quarta-feira, 30 de maio de 2012

Festival Brasileiro de Música de Rua - Reverberar

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26/05/2012 | N° 11384

ESPECIAL

Reverberar

Em As Cidades Invisíveis, Ítalo Calvino saúda as múltiplas camadas fenomenológicas gestadas pelo convívio na urbe. Diz que “a cidade aparece como um todo no qual nenhum desejo é desperdiçado e do qual você faz parte, e, uma vez que aqui se goza tudo o que não se goza em outros lugares, não resta nada além de residir nesse desejo e se satisfazer”.

O desejo foi saudado em notas e acordes há uma semana, quando Caxias assistiu, aplaudiu, comemorou, se excitou e se satisfez com o Festival Brasileiro de Música de Rua. E como desejo aciona sonhos, reverbera no inconsciente, também provoca e repercute. São muitos os ecos do que se experimentou em cinco dias de programação.

Cena 1, pela delicadeza do experimentado: no domingo à tardinha, tom amarelo-rosado no céu, Marcelo Armani captura eletronicamente uns gritos de pássaros no Parque dos Macaquinhos. Daí ele fez mais som. E os bichos, do alto da árvore, rindo que só, cantaram juntos. Difícil não querer mais dessa mixagem.

Impossível não pensar no quanto gestamos de intolerância em meio à urbanidade impessoal, que nem atenta que, sobreviventes, há pássaros sobrevoando nos céus, se aninhando nas poucas árvores que restam. Armani havia protagonizado delicadeza maior, acionando percepções sutis-sonoras entre as crianças que frequentam a Apae e Apadev. Na cidade visível, o que às vezes se quer ver é potência de sensibilização, de reinvenção.

Mas eis que, cena 2, sexta-feira, o fim de tarde do Camelódromo já surpreso com um DJ e um músico que ali performavam, recebe um quinteto de metais. Na profusão da mistura, fundem música eletrônica com acordes clássicos, sampleiam a paisagem sonora, reduzindo o impacto das freadas dos comboios de ônibus que por ali passam. E, mais significativo ainda: das janelas dos coletivos, celulares tentam registar a cena. E quando alguém quer “tirar uma foto” na verdade quer acrescentar aquele instante à sua memória afetiva. Afetos que se encerram na cidade possível.

Voltando aos Macaquinhos, quando o happening de domingo fazia ecoar entre os passantes o já tradicional “nem parece Caxias”, eis que descobrimos as muitas cidades esquadrinhadas numa só. Cena 3: os Poetas Divilas, coletivo que faz rima social na batida da cidadania, traz para o seu palco o hip hop da Quadrilha Periférica, do bairro Mariani.

No reverso da geografia urbana, pelo viés da contemporaneidade, é preciso atentar que é das bordas que vem o novo, como ensina o sociólogo Muniz Sodré: “a cidade clássica, burguesa, a cidade-monumento (do Imigrante?!), está mudando. A cidade moderna, de algum modo, espelha um capital mais flexível, planetário, e a conformação de uma sociedade espalhada em rede e governada por fluxos. Não são fluxos de telecomunicações, mas trocas diretas, mesmo sem tecnologia. A cidade hoje é reticular, não é mais centro. Esse centro até existe, mas a periferia hoje é que importa. É a questão das bordas.”

São muitas outras cenas, várias cidades vislumbráveis. Tantas paisagens sonoras ainda reverberam! Elas afirmam a diversidade das ruas, palco de convívios, sinfonias de gozos, sonhos e desejos acionados por um festival de possibilidades.

O visível talvez não seja tão decifrável num primeiro olhar. Ele até cega quem deveria ver o óbvio. Mas ele ali está, na poça da pouca água que resta ao lado do chafariz seco da praça, numa aquarela fotográfica que, de novo, repercute na memória. Entre tantos ritmos, Dante, no mínimo, foi ao paraíso.

carlinhos.santos@pioneiro.com
CARLINHOS SANTOS